segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Natal sempre

Cada um de nós tem os seus pontos de vista que devem ser respeitados. Todos temos legitimidade de concordar ou discordar dos pontos de vista dos outros, desde que o façamos com correcção, sem qualquer intuito ofensivo, sem assumirmos qualquer atitude de superioridade, no pressuposto de que o nosso é que é o verdadeiro.
Este preâmbulo vem a propósito do clima de crispação entre o Presidente da República e o Governo e o Partido Socialista. Qualquer dirigente, nomeadamente das instituições do Estado, sobretudo os que exercem funções da mais alta responsabilidade, quando interpelados ou quando entendem pronunciar-se sobre determinados assuntos, não o devem fazer como se fossem um qualquer cidadão comum, mas com a diplomacia suficiente para não criar conflitos tão desnecessários como prejudiciais para o bom funcionamento das referidas instituições.
É legítimo que o Presidente da República tenha as suas prioridades, como é legítimo que o Governo tenha as suas, independentemente de cada um concordar ou não com as do outro. Estar de acordo ou não é normal, já não é normal que qualquer deles se pronuncie publicamente sobre as prioridades do outro, desnecessariamente e de forma a provocar conflitos.
Não estando em causa a minha concordância ou não com a legalização dos casamentos entre indivíduos do mesmo sexo, parece-me que, embora o Governo esteja legitimado para legislar nessa matéria, num momento de crise como a que atravessamos e num clima político pouco pacífico, o governo deveria deixar tal matéria para mais adiante, na legislatura. Tal matéria não faria parte, pois, das minhas prioridades. Parece, assim, que estou de acordo com Cavaco Silva. Só que eu sou um cidadão comum, sem responsabilidades nos mais altos desígnios da nação. Cavaco Silva, ao ser interpelado pela comunicação social sobre a decisão do Governo aprovar os casamentos gays, respondendo da forma que respondeu, fê-lo de forma provocatória para o governo, com o seu ar de superioridade, de quem se julga senhor incontestado da verdade, de quem “nunca erra e raramente se engana”, o que contraria o que deve ser o comportamento de um Chefe de Estado, e aquilo que o próprio Cavaco Silva frequentemente apregoa. “Bem prega Frei Tomás”. Parece-me que o espírito de Natal anda arredio daquelas paragens entre Belém, S. Bento e o Rato, até porque a réplica dada, quer pelo governo, quer pelo PS, também não terá sido a mais adequada e de molde a proporcionar quaisquer tréguas.
Bom, pelo menos esta situação fugiu um pouco à habitual hipocrisia natalícia. Se isto significasse a morte da hipocrisia, só por isso teria valido a pena. Mas não tenhamos ilusões, a hipocrisia vingará e, pelo que se vai vendo, cada vez tem mais força, mais praticantes, porque se torna evidente, para infelicidade nossa, que a maioria dos mortais se convenceu que só usando-a conseguirá triunfar. De facto, mesmo aqueles que abominam a hipocrisia, como eu, que têm escrúpulos em a utilizar, mas não são ingénuos, verificam que quem normalmente triunfa, ainda que sejam absolutamente medíocres, são os que mais prometem, mesmo que pouco façam, e sabem usar, com perfeição, essa extraordinária, mas mentirosa, arma de sedução, que é a hipocrisia.
Desde muito jovem, me chocou verificar que aquelas virtudes, de que todos nós deveríamos estar imbuídos durante os trezentos e sessenta e cinco dias do ano, por muitas pessoas, só são vividas na época natalícia. E tantas vezes, de forma hipócrita. Eu atrevo-me a afirmar que o Natal é, ao contrário do que deveria ser, a época da hipocrisia. Bem sei que é uma afirmação polémica. Assumo-o, até porque o ser polémico faz parte da minha essência. E confesso que gosto muito de mim assim. Ninguém acredita que se consiga gostar de alguém, sem gostar primeiro de si próprio. Só quem gosta de si, sem ser por narcisismo, sem ser por vaidade, sem ser por se julgar possuidor de atributos, de méritos, que de facto não tem, mas porque vive em constância com a consciência tranquila, que olha os outros sempre com olhos nos olhos, que só se olha os outros para os ajudar a levantar, que caminha sempre de cabeça erguida, que só fala nas costas de alguém aquilo que é capaz de dizer frente a frente, só quem possui estes atributos é capaz de verdadeiramente gostar dos outros, ser solidário, fraterno. A solidariedade, a fraternidade são de todos os dias e não apenas do Natal.Mas o que é que nos é dado ver, afinal?! No Natal, quase todas as instituições, as pessoas, vestem a pele de pais natais, enchem a boca de solidariedade, amor, paz. Às vezes praticam essas virtudes. Às vezes até o fazem com sinceridade. Outras vezes apenas e só hipocrisia. Muita e repugnante hipocrisia. Desenvolvem-se as mais diversas campanhas de solidariedade, normalmente com resultados altamente positivos. Mesmo que muitas ofertas sejam consequência de alguma vaidade, alguma hipocrisia, desde que bem aplicadas, valem. Durante o resto do ano todos os carenciados deixaram de existir? A solidariedade, a paz, a harmonia, esgotaram-se? E porque é que a solidariedade tantas vezes é necessária à nossa porta, quem sabe, dentro de portas, e se ignora e, por outro lado, se mostra, sobretudo quando e onde há “holofotes”? Acha que não? Repare quantas pessoas, sobretudo avós e pais idosos são enviados para os hospitais em época de Natal e férias e lá são abandonados pelos familiares que não respondem sequer às solicitações para os retirarem quando têm alta! Porventura, alguns desses familiares não se escusam de ir exibir solidariedade por outras portas. E dizem que o Natal é a época, por excelência, dedicada à família! Quantas vezes, quase se tropeça na miséria e se finge não ver e se vai praticar a solidariedadezinha onde se dê nas vistas, onde os amigos e conhecidos possam tomar conhecimento do gesto. Podem assim arrotar as suas pretensas virtudes para satisfação das suas vaidades. E é bom não esquecer que a solidariedade não se completa na oferta de meios materiais. Algumas vezes nem é isso que é necessário, mas uma palavra de esperança, de carinho, um ombro amigo para receber um desabafo, o saber ouvir, o respeitar o silêncio, um simples e terno olhar, o estar ao lado, mesmo estando longe, o estender a mão. O que normalmente se vê em cada Natal que passa, não é aquele que eu preconizo, por isso esta época, não obstante o alegre convívio com meus filhos, seus cônjuges e netos, como tantas outras vezes o faço, me deixa sempre entristecido. O Natal, para muita gente, não é mais do que um pequenino paliativo, por uns dias, no oceano das suas dores, na imensidão dos 365 dias. O que eu desejo é que cada um seja, agora e sempre, autor e usufrutuário de todas as virtudes que mais se apregoam pelo Natal. São os meus desejos para si também.

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