terça-feira, 24 de abril de 2012

Memórias

Vivíamos há 48 anos sob ditadura – eu já a suportava há 31 anos – em que, tão reles como o próprio ditador – diga-se, em abono da verdade, que não sacou milhões para seu conforto – era toda uma escória de bufos, beleguins, polícias políticos “carniceiros”, políticos incompetentes, mas subservientes. Era a miséria escondida nos campos onde não chegava a água, a luz, a estrada, o médico, a escola. Era a miséria a inundar “ilhas” e bairros de lata, na maior promiscuidade e espurcícia.


Dia 24 de Abril de 1974. Era uma quarta-feira. Tinha uma mulher linda e um filho lindo com dois anos. Leccionava o 5.º e 6.º anos do ensino complementar na Escola de Vila-Chã, na minha freguesia de Nespereira. Já, há mais de cinco anos, tinha acabado de cumprir mais de três anos de serviço militar obrigatório. Porque desde os primeiros anos da década de sessenta, dava conta do que se passava em Nespereira e referia com algum atrevimento, alguma contundência – para a época, claro – as suas múltiplas carências, nas páginas do jornal “Miradouro” e “Primeiro de Janeiro”, vi muitas peças estupidamente censuradas e fui mesmo ameaçado de ser “posto na rua”, por um inspector escolar.

Não me amedrontei e continuei a escrever no “Comércio do Porto”, apesar de não ter outra fonte de rendimentos que não fossem os salários, meu e de minha mulher. Alguns textos eram transcritos pelo jornal “República”, dirigido pelo grande jornalista e democrata Raul Rego.

A Censura era tão estúpida que a simples publicação de um texto onde se afirmava que um determinado lugar não tinha um fontanário, servia para ser vítima de corte com o lápis azul.

Para fugir à Censura tínhamos o temerário jornal paroquial “Sinos d’Aldeia”, dirigido pelo saudoso e talentoso Padre Alfredo Pimenta, pároco em Tarouquela, no qual eu e vários outros escrevemos textos que traziam os políticos situacionistas cinfanenses em “estado de sítio”. Devo dizer que nunca escrevi um texto que não fosse assinado. Em Nespereira, com o Padre Justino, criámos o também paroquial jornal “Nespereirense”, defensor dos interesses da freguesia, grito de alerta contra as injustiças e elo de ligação entre os residentes e os muitos nespereirenses que tiveram de abandonar o torrão natal em busca de melhores e mais dignas condições de vida.

Por cá, a vida corria entremeada de factos anedóticos. Porque eu e minha mulher éramos críticos acérrimos da actuação da Junta de Freguesia, um dia, como retaliação, esta decidiu cortar a energia eléctrica do pardieiro feito escola onde minha mulher leccionava. Imediatamente, enviei um telegrama – ainda estávamos nesse tempo - ao então Ministro do Interior, Gonçalves Rapazote, e fomos manifestar-nos com os alunos para a porta do Presidente da Junta, que não ousou sequer chegar à janela. Quando cheguei a Cinfães para dar conta do sucedido ao Presidente da Câmara e informá-lo que não daríamos nem mais um dia de aulas enquanto não ligassem a luz eléctrica, antes que eu dissesse algo, ele, queixando-se que eu não o deixava em paz, informava que já tinha levado um “sermão” do ministro e que a luz já estria a ser reposta, o que de facto, aconteceu.

Numa interpelação educada à Câmara Municipal, mas inconveniente do ponto de vista desta, em reunião pública (?!) feita por mim e pelo saudoso grande colega, amigo e companheiro de luta, Carlos Carneiro, contra as injustiças, o ostracismo, a estagnação, foi o suficiente para sermos ameaçados de chamarem a GNR, o que não veio a acontecer, apesar de não desistirmos de dizer o que queríamos, graças à intervenção apaziguadora de alguns membros do executivo.

Poderia lembrar muitos outros episódios que vivi nesse período negro da nossa história, mas vou referir apenas mais um, para ficarem, sobretudo os mais novos, com uma noção mais exacta de como era viver até 24 de Abril de 1974: era eu Presidente da Casa do Povo de Nespereira, que, entre outras tarefas, tinha a seu cargo recensear e pagar as pensões de invalidez e velhice aos rurais que constituíam, nessa época, a maioria dos nespereirenses. Em determinada altura comecei a ser pressionado, e mesmo ameaçado, pelos Serviços de Segurança Social Distrital de Viseu que não deveria pagar pensões de velhice ou invalidez a mulheres casadas. Todo o resto do distrito já cumpria essa directiva. Insisti que não fazia essa interpretação da lei, que seria extremamente injusta e que continuaria a pagar a menos que eles cortassem o dinheiro. Apesar das ameaças, sempre enviaram as verbas de acordo com as folhas que enviávamos mensalmente. Mais tarde, deram conta do erro e anunciaram numa reunião pública, perante uma minha risada sarcástica, que se passariam a pagar pensões a mulheres casadas. Portanto, durante muitos meses, as mulheres casadas pensionistas de Nespereira foram as únicas do distrito que receberam as pensões a que, com toda a legitimidade, tinham direito.

Estas memórias referem-se ao período que terminou em 24 de Abril de 1974. Neste dia, não sabíamos que a próxima madrugada seria libertadora. Foi-o, de facto, mas hoje, 24 de Abril de 2012, 38, não 48, anos depois, a liberdade e a democracia estão ameaçadas. E a caminharmos para a pobreza de outrora.



1 comentário:

  1. Seria muito orgulhoso se fosse seu filho!
    Sò uma pergunta: Como é que nunca foram presos pela PIDE?

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